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A participação de empresas estrangeiras em compras públicas

A participação de empresas estrangeiras em compras públicas é assunto que frequentemente gera dúvidas mesmo em operadores experientes, na medida em que existe uma ideia comum de que somente em processos internacionais as empresas estrangeiras são admitidas a participar, o que é equivocado, adiantamos. Cumpridas algumas exigências legais, as empresas estrangeiras podem participar inclusive de processos licitatórios voltados ao mercado interno, como veremos.

Antes de adentrarmos propriamente na discussão objeto desse artigo, preciso fazer referência ao funcionamento de empresa estrangeira no Brasil, situação regulada pelo código civil vigente:

Da Sociedade Estrangeira

Art. 1.134. A sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos subordinados, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira. (grifamos)

Portanto, a toda evidência as sociedades estrangeiras somente podem operar regularmente no território nacional mediante autorização expressa do Poder Executivo, devidamente publicado em Imprensa Oficial e, para tal concessão, existem exigências diversas estampadas nos artigos seguintes do Código Civil, dentre as quais destacamos a contida no art. 1.138, que exige que a empresa estrangeira mantenha, de forma permanente, REPRESENTANTE no Brasil, com poderes expressos para “resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade”.

Quanto à referida “representação”, a prática demonstra que existe muita confusão a respeito de sua natureza jurídica, principalmente por parte de administradores dessas sociedades. Nesse diapasão, é comum ao empresariado entender por representação aquela de fim comercial, técnica e econômica; ou seja, preocupam-se em estabelecer uma empresa nacional REPRESENTANTE de seus interesses econômicos, em evidente equívoco à exigência legal.

Assim, a REPRESENTAÇÃO exigida pela lei é a capacidade de assumir compromissos em nome da empresa estrangeira ou, dito de outro modo, a capacidade de, em nome da sociedade estrangeira, “praticar atos ou administrar interesses”, nos precisos termos do art. 653 do mesmo Código Civil, que regulamente essa representação por meio do contrato de Mandato. Essa é a natureza da representação exigida pela lei para que as empresas estrangeiras possam operar no Brasil, entre outras que não são objeto desse artigo.

Por oportuno, cumpre registrar que, por não ser uma representação de natureza comercial, mas sim de mandato, o representante nacional não precisa ser sociedade empresária ou mesmo empresário, podendo então ser qualquer pessoa física (natural) ou jurídica com plena capacidade civil e que possa, nos termos da lei, “resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade”.

Voltando ao tema principal desse artigo, uma vez autorizada a funcionar no Brasil mediante cumprimento das exigências legais e nomeado seu representante, a empresa estrangeira poderá realizar todo e qualquer ato negocial lícito às empresas nacionais, o que inclui, observados as questões legais afetas, firmar negócios de compra, venda, tomada e prestação de serviços, efetuar propaganda, prospectar negócios e clientes e todos os demais atos da vida empresarial, onde se inclui a possibilidade de participar de processos licitatórios nacionais pois, afinal, a sociedade está autorizada a funcionar no Brasil, em toda a acepção do termo, incluindo aí a capacidade de ser sujeito de todos os aspectos de “direitos e deveres na ordem civil” (art. 1º CC).

Para essas situações, de empresas estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil, deverá ser observada a previsão do inciso V, art. 28 da Lei Geral de Licitações (Lei 8.666/93), que trata da habilitação jurídica dessas empresas, que será realizada tão somente mediante o decreto de autorização e ato de registro ou autorização para funcionamento expedido pelo órgão competente, quando for o caso.

Avançando, há de se analisar a situação das empresas estrangeiras que não possuem autorização para funcionamento no Brasil. Aqui, os mais apressados poderão entender que essas empresas não poderiam participar de licitações, no que há engano. Nessa condição, ainda que sem possibilidade de funcionar no país, a sociedade estrangeira poderá participar de licitação, desde que seja internacional, na inteligência do §4º, art. 32 da Lei Geral de Licitações, uma vez que, sem a autorização, essas empresas não poderiam cumprir com a habilitação jurídica, para o que existe então expressa previsão:

As empresas estrangeiras que não funcionem no País, tanto quanto possível, atenderão, nas licitações internacionais, às exigências dos parágrafos anteriores mediante documentos equivalentes, autenticados pelos respectivos consulados e traduzidos por tradutor juramentado, devendo ter representação legal no Brasil com poderes expressos para receber citação e responder administrativa ou judicialmente. Grifamos

À toda evidência, portanto, a lei expressamente autorizou as empresas que não funcionam no Brasil e mesmo sem autorização para fazê-lo, a participar de licitações – exclusivamente as internacionais, mediante exibição de documentos similares aos exigidos de empresas nacionais ou estrangeiras com autorização, nos termos da legislação de seus respectivos países de origem e aptas a demonstrar sua habilitação jurídica, regularidade fiscal, qualificação econômico-financeira e técnica, sempre que for exigido pelo edital assim fazê-lo.

Destaque aqui para o trecho final do dispositivo que exige: “devendo ter representação legal no Brasil com poderes expressos para receber citação e responder administrativa ou judicialmente”. Aqui vale a mesma reflexão feita anteriormente quanto a representação exigida para as empresas estrangeiras funcionarem no país. Trata-se, pois, de representação jurídica, mediante contrato de mandato, conferindo poderes à pessoa física ou jurídica, residente ou sediada no Brasil, de assumir deveres e direitos em nome da sociedade estrangeira, sem confundir-se com qualquer modelo de representação comercial ou técnica.

Agora deve surgir uma dúvida ao leitor que segue atento: ainda que possa participar da licitação internacional a empresa não autorizada a funcionar no país, como poderá cumprir o objeto do contrato, se vencedora for, se não está objetivamente autorizada a funcionar no país?

Quanto ao assunto, doutrina e jurisprudência são unânimes na interpretação de que o “funcionamento no país” pressupõe atividades rotineiras, frequentes, de interesse continuado e permanente.

À título de exemplo, imaginamos a contratação de empresa estrangeira para manutenção de equipamento de alta tecnologia, como por exemplo aviões de combate. Se o objeto for a realização do reparo de defeitos específicos, em que a empresa envia seus técnicos que, cumprindo os reparos, retornam ao seu país de origem, temos que a operação é eventual, precária e isolada e, por isso, não se caracteriza como “funcionamento”, dispensando então a “autorização de funcionamento”.

Todavia, se a contratação for de natureza continuada, preventiva ou corretiva, mas que exija permanência dos técnicos no país ou pelo menos sua vinda regular para realização dos serviços, entende-se que a empresa estrangeira está efetivamente operando ou funcionando no Brasil e, para isso, requer-se a autorização prévia.

Há aqui reflexão importante a ser feita. Seja mediante autorização de funcionamento no país ou não, a empresa estrangeira que participar de licitação sempre o fará em nome próprio, ainda que mediante representação, de tal sorte que é a própria sociedade estrangeira que assinará o contrato, executará o objeto, receberá a contraprestação financeira pelo fornecimento ou serviços, bem como será ela quem sofrerá eventuais penalidades ou multas, administrativas e judiciais, e não seu representante no Brasil.

Em que pese não ser tema complexo, há toda evidência ocorrem confusões rotineiras a respeito em processos de contratações públicas. Nesse sentido, destacamos acórdão nº 8433/11 da Primeira Câmara do Tribunal de Contas da União em que o assunto foi debatido. Na ocasião, a vencedora do processo licitatório foi uma empresa canadense, não autorizada a funcionar no Brasil, representada por empresa nacional. Assinado contrato, houve descumprimento por parte da empresa que restou penalizada pelo órgão público, o que não afetou a empresa brasileira, tão somente representante. Extraímos alguns trechos do acórdão que retratam de modo claro o todo defendido até o momento:

A respeito da contratação de empresas estrangeiras pela administração pública brasileira há que observar se essas empresas funcionam ou não no Brasil. Para as empresas que funcionam no país, aplica-se o disposto no inciso V do art. 28 da Lei n. 8.666/1993, ou seja, exigência de decreto de autorização; para as que não funcionam no país, aplica-se o disposto no inciso IV do art. 32 da mesma lei, isto é, exige-se que estas tenham representação legal no Brasil com poderes expressos para receber citação e responder administrativa ou judicialmente.

Porém, se o objeto da licitação internacional acarretar funcionamento no Brasil, a empresa estrangeira estará sujeita a cumprir o disposto no Código Civil brasileiro. O funcionamento no Brasil se configura quando existir continuidade e permanência na atividade desenvolvida. Se, por exemplo, uma empresa necessitar efetivar contratos com brasileiros para executar contratos com a administração pública, estará configurado o ‘funcionamento’, completa Justen Filho.

Dessa forma, é forçoso endossar a análise constante no item 2.1 da Peça 7, no qual o [omissis] registrou que ‘não há nada de errado no negócio jurídico celebrado entre a União, na qualidade de contratante, e a empresa [estrangeira], na qualidade de contratada, uma vez que a Lei n. 8.666/1993 estabelece em seu art. 32, § 4º, que a empresa estrangeira que não funcione no país deve ter representação legal no Brasil, com poderes para responder administrativa e judicialmente. E esse requisito foi cumprido pela contratada.’

(…) não restam dúvidas de que a vencedora desse certame, [empresa estrangeira], é que deve ser a signatária do ajuste firmado com o [órgão público] e, por consequência, deve responder pela adequada execução dos serviços pactuados, sendo que, no âmbito dessa contratação, a [representante nacional] atua apenas em nome da empresa estrangeira contratada que não possui filial no Brasil. Grifamos

Em artigo mais longo do que o usual, mas devido à relevância do tema e diversos diplomas legais envolvidos, esperamos que a questão da participação de empresas estrangeiras em licitações esteja devidamente esclarecida.

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